quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Meu José




José tem em todas as partes, em todas as raças, credos e condições sociais, mas acho que ainda sobra uma vaguinha para falar do meu José.
Para chegar ao velho, temos de voltar ao menino pobre, sem poesia, apenas mais um filho de uma boa Maria que com quatro filhos pequenos, viúva e desamparada, voltava ao lar paterno em busca de abrigo.
A casa grande nos moldes antigos, aconchegante na sua simplicidade, oferecia o conforto de uma boa rede, comida farta nas horas certas e, principalmente, o carinho de um velho de coração grande e palavras curtas.
As tias vitalinas, sem permissão para espancar os sobrinhos, olhavam atravessado para os filhos da única irmã que conseguira casar e, mesmo por pouco tempo, abandonar a monotonia provinciana e respirar os ares da capital.
José passou brilhantemente pelo grupo escolar e graças a uma boa amizade com os padres Jesuítas pôde aprimorar os conhecimentos, aprender francês e abrir os horizontes para algo além da vidinha parada num empreguinho sem futuro, esperando o ano inteiro pelo mês de dezembro, quando a cidade era sacudida pelos festejos de Santa Luzia, a Padroeira.
Foi difícil sair, crescer e ser aceito na cidade grande tendo de estudar à noite e trabalhar de dia para criar os filhos. Às vezes, o dinheiro não dava para a mensalidade do Colégio e dona Camélia precisava bordar e preparar festas para pessoas ricas para ajudar na manutenção da casa.
O anel de formatura foi presente do primo Érico Mota, a beca foi alugada e o escritório foi montado na sala principal da casa de morada, cuja única pretensão era a placa de doutor na parede da frente.
Não foi um pulo subir. Não era suficiente o saber numa profissão em que a justiça se arrasta e a verdade nem sempre vence. Mas o Dr. José, graças às boas leituras, era muito bom em oratória, o que ajudava na profissão de advogado, e escrevendo, seus artigos de jornal eram muito bem aceitos. Para assegurar o futuro da família, o Dr. José Alci fez um concurso para Promotor de Justiça e, mais uma vez, passou com louvor.
Farta clientela, boas amizades; mais alguns anos e seria procurador, mas o destino não quis e no auge da carreira, ele perdeu a visão. Foi um sofrimento mudo e nunca ouvi de sua boca uma blasfêmia com Deus ou com a sorte.
O trabalho diminuiu, mas os estudos continuaram intensos. O ordenado de promotor, mais o de jornalista, assegurou um orçamento razoável, suavizando a vida em pequenas comarcas do interior. A aposentadoria deu-lhe condições para trocar o panorama rural pela maior metrópole brasileira, realizando assim, o velho sonho de morar em São Paulo.
Com maior número de livrarias à sua disposição, continuou estudando e escrevendo. Superando a cegueira e suas limitações, com honras à dona Camélia, que lhe cedeu o ombro amigo e os olhos.
 Trocando o constituinte plebeu pelo convívio constante do inseparável Maquiavel, os Luizes e a Rainha Vitória, ele ganhou ainda mais sabedoria.
Vinte e três anos quase no escuro, iluminado apenas pela mente, pela família e pelos poucos amigos que lhe restaram, e eis que de repente apareceu um médico prometendo-lhe a volta da visão. Ele pediu para pensar e quando todos sonhavam em vê-lo enxergando novamente, ele declarou que não iria operar. Agradeceu a Deus pela oportunidade esperada há tantos anos, mas a resposta  foi NÃO.
As explicações são poucas e desnecessárias. Com 77 anos, sentado no seu escritório, cercado pelos livros, amigos de todas as horas, ele continuou o advogado de primeiríssima, o promotor justo e o jornalista brilhante. Na sua postura nobre, no brilho de seus cabelos brancos e no seu falar pausado e claro, via-se a personalidade notável de um grande homem de quem o destino tirou quase tudo, menos o direito de dizer NÃO.

José Alci


                                                                                                                        De: Angela Paiva
José Alci Maciel de Paiva casou com a prima Camélia Paiva, filha de seu tio Enéas Frutuoso de Paiva, no dia 25 de dezembro de 1937. Foram morar em Recife, onde nasceu e morreu a primeira filha, Vera Regina. Ao voltarem para Fortaleza, José Alci resolveu continuar os estudos. Enquanto a família crescia, ele trabalhava de dia e estudava a noite. Dona Camélia ajudava bordando e fazendo comida de festa, enquanto trocava fraldas e educava os filhos que iam chegando de mansinho, um a cada dois anos. Assim vieram Sérgio, Luciano, Moacir (que só viveu um ano) e Ângela que, ao completar cinco anos, apadrinhou seu pai, que se formava em direito.
Moraram muitos anos em Fortaleza, onde os filhos cresceram e formaram as suas próprias famílias. Ao se aposentar, com um salário razoável, o casal resolveu morar perto dos filhos, que nesta altura do campeonato, estavam morando todos longe. A família do Luciano estava residindo em Curitiba e o pessoal do Sérgio e da Ângela estava em São Paulo. Eles optaram pela “terra da garoa”. Moraram muitos anos na capital, de onde o Dr. Alci enviava suas crônicas para o jornal O Povo, em Fortaleza.
Mas morando em apartamento, dona Camélia sentia falta de um jardim para plantar roseiras, sentia falta de um cachorrinho e, quem sabe, um papagaio que dissesse “curupaco” e assobiasse nos dias de chuva.
Era preciso contentá-la; sem abrir mão de São Paulo, foram  morar em Itatiba, cidade serrana, de clima agradável e povo hospitaleiro. Lá fizeram bons amigos, e quando Ângela, e tempos depois, Luciano voltaram para o Ceará, os velhos ficaram onde estavam. A volta para Fortaleza ainda demorou alguns anos, mas a idade foi chegando, Ângela fez pressão e eles baixaram a guarda.
Vez por outra eles voltavam a São Paulo, motivos era o que não faltavam; o Dr. Alci já estava programando uma nova visita aos parentes e amigos que lá deixaram, mas quando o bom Deus o convidou para fazer a grande viagem, não resistiu, partiu sem nem dizer até logo. Ele gostava de viagens, mas detestava as despedidas.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Quinô


 José Alci Paiva
            Ao tempo em que se passou esta história, meu cunhado e primo Boanerges Paiva exercia na antiga R.V.C. o cargo de Inspetor de Linha Telegráfica, possuindo, inclusive um telefone em sua casa de Parangaba, de onde, ainda de pijamas, podia se comunicar linha afora com seus subordinados à margem da ferrovia. A primeira oficina de assistência e manutenção era, naturalmente em Aracoiaba, de certo pôr motivos técnicos, mas o mais certo era porque ali morava seu pai e meu tio Enéas Paiva. Mais uma vez, juntava-se o útil ao agradável.
            No posto de serviço de Aracoiaba, estava ou deveria estar, sempre de plantão, o Quinô, funcionário antigo que do meu conhecimento, nunca deu um dia de serviço para ninguém, alegando um problema nas pernas resultante, entre muitos motivos, de muita “cana” que ingeria para preencher o tempo, justiça lhe seja feita, porque trabalho não havia.. Era pôr sinal meu compadre de crisma e ainda hoje me lembro da dificuldade com que sujiguei o meu afilhado já grandão, desde o Cruzeiro da Matriz de Aracoiaba ate a grade onde se encontrava o então Arcebispo Dom Manoel da Silva Gomes.
O Quinô era também compadre do Boanerges, e na casa deste, transformada constantemente em Consulado de Aracoiaba, sempre com muitas visitas para o almoço, jantar e dormida, estava morando uma filha dele, a título de estudos, uma meninota de uns doze anos.
Certa manhã, o primeiro telefonema foi como sempre para Aracoiaba e o Boanerges aproveitaria para dizer ao Quinô, que mandasse pelo trem “horário “CR$ 20,00 para comprar um par de sapatos para a menina”. Ao dar as primeiras rodadas no veio, já o Quinô estava respondendo das bandas de lá: “Compadre Boanerges, a linha está que é uma beleza”. Parece que o compadre esta aqui bem perto! A voz tá que é uma maravilha, não precisa encostar o fone no ouvido”. Boanerges aproveitou os elogios de uma boa audição e entrou no assunto do dinheiro: “Sim, Quinô, mas mande CR$ 20,00 pelo trem porque a menina esta precisando de sapatos. Não conseguiu porem ir mais adiante porque o compadre gritou do lado de lá:” Compadre, não estou ouvindo mais nada”.  O Boanérges repetiu a história do dinheiro cada vez mais alto, sabendo que o Quinô estava saindo pela tangente. Do outro lado o compadre alegava que estava passando uma nuvem, que não adiantava mais tentar: “Compadre, não esta dando mais nada. Não estou ouvindo nada. “Vou desligar”. E desligou.
O Quinô já hoje não existe, bem como o seu chefe. Mas o tema é representado vez por outra inteirinho, quando se fala em alguma coisa, especialmente dinheiro, que tenha de sair do bolso do outro. A Conversa vai muito bem, o assunto é do interesse de ambos, mas, quando se fala em dinheiro, o outro não está ouvindo mais nada.

Os Anexos da Carta


José Alci Paiva 
            Eu tinha interesse em que minha carta chegasse a Fortaleza no dia seguinte e estava redigindo-a as pressas, aproveitando um resto de luz elétrica que iria terminar às dez da noite. As comunicações entre Aracoiaba e Fortaleza se limitavam aos trens da R.V.C., pois não havia linhas de ônibus e os caminhões quase não trafegavam naquela época invernosa. Pedi a uma pessoa que me estava próxima que indagasse quem iria viajar para Fortaleza pelo “suburbano” do dia seguinte (era um trem que fazia o trecho ate Baturité, regressando todas as manhãs e apesar do longo percurso, o nome o acompanhou ate a extinção).
             Soube logo que o Rochinha viajaria e me apressei em mandar-lhe um recado que não fechasse a porta, pois eu iria levar uma carta para que ele a entregasse em Fortaleza.
            Coincidência feliz aquela. O Rochinha era dos mais prestantes homens do lugar. Serviçal ate não mais poder. Honesto pôr excelência e, sobretudo, me tinha muita deferência. Era um tipo curioso da cidade, pequeno quitandeiro, nada fizera no comércio, mas perseverava e o bom Deus lhe dava, pelo menos, o sustento para si e os seus. Como político era uma negação: mais de uma vez candidatou-se a vereador, mandou imprimir milhares de chapas que distribuía em profusão, na ingênua confiança de que todas iam cair no fundo da urna.
Nunca o vi penteado. A não ser nos enterros e na posse dos prefeitos (porque seria o paralelismo)? quando envergava a velha casimira azul, quase preta, era sempre a mesma apresentação, muito despicienda Assim mesmo, era useiro e vezeiro no Cartório do Castrinho, acompanhando os seus casos forenses, pois que era invariavelmente nomeado curador de ausentes e interditos, tutor de menores, defensor dativo dos que não tinham advogado. Punha nisso toda a sua vaidade. Era vê-lo assinando as defesas feitas pelo Castrinho ou tomando parte nas audiências, imponentemente inútil, porque não sabia fazer qualquer pergunta! Todos os juizes designados para Aracoiaba, recebiam logo a visita do Rochinha, que se apresentava como advogado da terra, o advogado dos pobres e dos humildes, como diria se soubesse dizer essas coisas de comício. Mais do que advogado, porque a seu ver, fazia parte da Justiça local, ou, melhormente, usando as suas próprias palavras ao Dr. Raul Girão, então Juiz de Direito, “fazia parte da comandita”! Sob a denominação de comandita, ele reunia todo o pessoal da justiça do Município, principiando pela importante figura do Juiz!
            Eu já estava com a carta terminada e ia saindo para a casa do Rochinha, quando ele “riscou” à minha porta, ofegante, parecendo mais gordo que de natural, a camisa por fora das calças, os pés milagrosamente acondicionados nuns restos  de tamancos, o seu calçado predileto.
            _ Doutor, eu vim aqui dizer que não posso levar a sua carta.
            Eu poderia esperar tudo, menos aquilo. Teria o Rochinha renunciado ao seu quase sacerdócio de fazer favores? De ser prestativo, dos mais prestativos que eu conhecia? E continuou o seu arrazoado, dobrando e redobrando um já amarfanhado chapéu de massa marrom.
            É o seguinte doutor: eu vou dizer pôr que não levo a sua carta e o senhor não ficará zangado comigo...
            Tentei interrompe-lo. Que sim. Que não necessitava de desculpas. Eu as acreditava sinceras. Não precisava de esclarecimentos. Mas não o contive e ele prosseguiu:
            _ Eu estava uma vez em Fortaleza, de vinda para ca. E um filho do “seu” Quinca Pereira me pediu para trazer uma carta para ele. Era uma coisa urgente e me pediu que fosse entregar pessoalmente quando chegasse. E fui mesmo. Cheguei lá o homem leu uns três ou quatro estirados de papel almaço e, no fim me disse: Rochinha, e as latas de pescadas? “Que pescadas seu Quinca?”, atalhei aflito.
_Olhe Rochinha, aqui na carta acusa: anexas – duas latas de pescada...
            Doutor, o senhor não imagina a minha contrariedade. Eu não tinha recebido pescada de espécie alguma. Nada, só a carta. Foi um Deus nos acuda e eu creio que, apesar de eu ser um homem direito, a minha história não calhou logo na cabeça dele...
Rochinha falava alto, gesticulava tão aflito na reprodução dos detalhes, quanto, pôr certo, estivera na ocasião da desagradável ocorrência. Parecia que a coisa estava se dando ali mesmo. Naquela hora; que se tratava de um acontecimento atual, presentes todos os personagens; que estava novamente  defendendo seu nome, expungindo as mais pequeninas duvidas em torno de sua honestidade!
Eu estava para rir daquilo tudo: a carta em cima da mesa, o Rochinha repetindo uns trechos da história, a luz já piscando para apagar, o chapéu de massa já entulhando uma cesta de papéis, quando ele, fazendo uma pausa em que insistia em colocar na casa muito suja da camisa um botão infinitamente maior, pôs uma pedra em cima do assunto: _ Pois é doutor, desculpe. Mas eu não levo a sua carta porque não sei se ela acusa algum anexo!
...

Os Estudos do Lindolfo


 José Alci Paiva
            Direi que se chamava Lindolfo, para não mencionar-lhe o nome exato, pois é possível que lhe vivam parentes, e não serei eu quem ira tingir o manto de sabença que talvez os envolvam, com a notícia de que um seu antepassado foi o menino mais burro de que tive notícias. Porque na verdade - que isso não lhe crie dificuldades no outro mundo, e não seja pôr causa de sua burrice que não esteja santamente refestelado em confortável assento nos páramos eternos – na verdade, repito, o Lindolfo era mesmo burro. Burro por convicção, naturalmente burro; era burro na mais desmesurada latitude do termo. Se me permitem um contra-senso, eu direi que aquilo lhe parecia uma virtude, tão enraizada a sua burrice, tão espontânea, e, poderei acrescentar, para justificar a comparação: tão inofensiva e modesta.
            O pai de Lindolfo o mandou aprender “letras” com o professor Frutuoso de Paiva Brito, pôr sinal que meu avô paterno, homem austero, com o qual não havia menino “rude” que não desarnasse. Era, aliás, o único, na sua arte em Baturite. Lindolfo chegara à cidade como um poldro chega ao amansador “para alizar os pêlos e arredondar os cascos”. E ficara decidido que se hospedaria em casa de meu avô materno, “coronel” Antônio Maciel, compadre e amigo do pai dele. Não o conheci, pois isso se deu muitos anos antes de mim. Mas tive farto noticiário a respeito do talento do Lindolfo. Disso deu as mais convincentes provas. Era renitente na sua burrice, não deixando nunca que lhe polissem as arestas. Inúteis os métodos do professor Frutuoso!
            Diariamente regressava da aula com equimoses no espinhaço, ou com as mãos inchadas pela palmatória do velho. Mas o físico lhe permitia aquelas servícias e talvez o prejudicado fosse o velho, para quem o exercício físico de surrar o Lindolfo, já deveria estar acima de suas energias. Alem dos indícios veementes de que “não dera a lição”, trazia, para documentar o ocorrido, um bilhete que meu avô guardava, para apresentá-lo ao pai do Lindolfo, pôr ocasião da sua visita mensal ao filho.
            Quem pôr ventura, metera na cabeça do pai que ele gostava daquele martírio? Pensava o Lindolfo em suas horas amargas. Não seria melhor que tivesse ficado ajudando no roçado, banhando os animais, tirando jandaíra, tomando banho de açude?
            Ainda penso que ele teria razão nas suas considerações, especialmente quando sabia de ciência própria, que era constituído de material resistente a qualquer tentativa de penetração.
            A cartilha estaria nova em folha se o professor não tivesse batido com ela tantas vazes na cabeça do Lindolfo, como se o que nela continha pudesse entrar pôr atrito, pôr fricção. Os cadernos, um de “contas e outro de escrita”, testemunhavam o desinteresse do Lindolfo: aqui e ali ele garatujava uma coruja que não se parecia com ave nenhuma ou um bicho qualquer medonho, cheio de dentes pontudos e ameaçadores. Organizada, cuidada e zelada, só a sacola da merenda.
            As informações dadas ao velho, a respeito do aproveitamento do filho, eram lacônicas, porque a documentação falava pôr si. O meu avô se limitava a passar às mãos do compadre a maçaroca de bilhetes que recebera durante o mês, ele os lia um a um, pôr traz de uns óculos mal ajustados na cara. Alias, bastaria ler apenas um, pois o restante era do mesmo teor...
            Depois da demorada leitura, pedia permissão ao meu avô para ir exemplar o Lindolfo. Meu avô ficava silencioso, na sua cadeira de balanço, sem uma reação, porque sempre foram inúteis as suas objeções. Daí a algum tempo, lá se voltavam os dois, do fundo do quintal, o pai e o filho, abraçados, suados. O velho apopléctico; o filho lanhado a relhos crus.
             A reação paterna se fizera sentir, ao modo da época: o Lindolfo ficara exemplado... Que entenderia o velho pôr aquele exemplado, que nenhum exemplo produzia, nem mesmo no filho?
            Isso durou não sei quanto tempo: surra na escola, bilhete na volta, surra mensal para que o Lindolfo fosse exemplado. Mas sei como terminou. Porque o pai de Lindolfo morreu antes que ele completasse o curso. Vinha descendo a serra e, não se sabe como, o burro cardão cismou não se sabe de que, murchou as orelhas e rebolou o velho de grota abaixo. De lá ele já saiu com as condições que precisaria para morrer: uma perna quebrada, três costelas desmanteladas e uma pancada à altura da pá esquerda. Foi dessa que ele se queixou mais ate morrer, dizendo que tinha certeza de que apustemara pôr dentro. Não sei se o auto-diagnóstico era exato. Sei que ele morreu mesmo, como se morre no sertão numa rede branca de varandas, com uma esteira de palha pôr baixo, pra evitar a frieza...
            Foi só a notícia da morte do velho chegar a Baturité o Lindolfo partiu, feliz, para o enterro do pai, levando o material que a partir daquela data haveria de ser inteiramente inútil. Regressava às origens de onde nunca o haviam de ter arrancado.

Encontro Com Meus Parentes BONATES

De José Alci Paiva

Foi em junho deste ano {1985} que das colunas de O Povo, me lancei em busca de meus parentes BONATES, ramo a que pertencia a minha avó materna, MARCELINA BONATES MACIEL. Naquela oportunidade, nada me custou dizer que sei muito a respeito de meu avô e nada a respeito da dita avó, acrescentando que meu avô ANTÔNIO MACIEL, pertencia a uma então importante família de Baturite, comerciante dos mais conceituados, proprietário de muitas casas, enquanto que minha avó era de descendência modesta: por honrada que fosse, e bem que o era, não interessava a ninguem a sua genealogia ensombrada justamente ou generosamente pelo marido. Poucos eram os seus parentes em Baturite {muitos foram tentar a sorte no Amazonas} e infelismente, sem dinheiro e sem condição social. Minha falta de conhecimento, não se justifica, mas se explica.
Logo depois que o jornal O Povo circulou, recebi delicado telefonema de uma parenta que prometeu vir a nossa casa dizer o que sabia a respeito dos BONATES, mas não tive o prazer desta visita. Visitou-me outra distinta parenta e ficou de voltar com algumas informações, mas tambem não voltou. Um distinto militar sediado em Manaus, em trânsito por Fortaleza, me telefonou dizendo ser meu parente, disse que me procuraria, mas não o fez.
Estaria eu na estaca zera, não fosse uma carta recebida da Nair Bonates, minha prima em segundo gráu, residente em Manáus que recorda algumas coisas dos primitivos BONATES e promete me ajudar na obtenção de novos elementos. Se a tanto me ajudar, o engenho e a arte, como diria o poeta, eu publicarei as conclusões a que chegar, para ilustração da nova geração desconhecedora de sua história. Mas insisto na colaboração escrita de parentes de boa vontade: nomes completos, datas de casamentos, nascimentos, falecimentos, lugar onde passaram a morar os descendentes e se possivel, a data exata em que Antonio Bonates chegou ao Brasil.
No momento a história esta no começo.
Em época desconhecida, admitamos para argumentar o ano de 1840, desembarcou em Fortaleza ANTÔNIO BONATES, ao que tudo indica integrante de uma companhia de teatro. Era italiano de nascimento e parece que seu meio de vida estava ligado a representações teatrais. Ignoro se a companhia de teatro se dissolveu ou se foi embora sem ele e o que fazia nela.
Vamos encontrá-lo anos depois em Baturite exercendo a profissão de alfaiate. Ali se casou com uma moça de nome Francisca, não sabemos de quem era filha, nem quando se realizou o casamento, mas sei que houve muitos filhos entre os quais Marcelina, minha avó e Maria Rosália, mãe de Nair Bonates, a prima que me escreveu de Manáus. Antonio Bonates chegou a ser delegado de polícia em Baturite.
Naqueles antigamentes, eu arregaçava as mangas e me punha no encalço da historia dos meus parentes Bonates onde ela pudesse estar registrada ou simplesmente arquivada: um livro de nascimento ou óbito nos cartórios, um registro de sacristia dizendo que alguem se batizou, se crismou ou se casou; ainda nos cartórios, os velhos processos de inventário e partilha as escrituras de compra e venda e doações, os termos de aforamento; na prefeitura o que se houvesse sido pago em nome das pessoas procuradas a título de Imposto Predial, indústrias e profições, licença para comércio, títulos de nomeações e tanta coisa mais.
Hoje a saude se não me atrapalha tambem não ajuda, e a idade também atrapalha como dizia Stendhal de como é difícil e trabalhoso pesquisar as mais pequenas coisas: “ESTREMECEMOS AO PENSAR NO QUE É PRECISO DE BUSCAS PARA SE “CHEGAR À VERDADE SOBRE O MAIS FÚTIL PORMENOR”.

Esse Mundo Perdido

De José Alci Paiva

Minha tia, Conceição Paiva, nasceu em fins do século passado, em Baturité. Ali viveu e ali casou, não arredando o pé senão para sua derradeira morada, depois de criados todos os filhos de acordo com os métodos didáticos e pedagógicos da época, reforçado com o exemplo de seu pai meu avô paterno, professor Frutuoso de Paiva, mestre escola de relho e palmatória complementares dos ensinamentos escolares. Tudo isso ainda acrescentado da autoridade soberana que ela desfrutava em casa. Certo que, antes do patriarcado, a que os historiadores se referem, veio o matriarcado, isto é, aquele período social em que toda a direção da casa cabia a mulher, reservando-se ao marido as tarefas externas. Não era um período matriarcal aquele em que minha tia viveu, mas o marido, Vicente Gonçalves Silva, um bom homem que possuía uma modesta casa de negócios no quadro do mercado, dera-se pôr feliz em achar autoridade doméstica, que, ao que parece, lhe havia passado de tinta e papel todos os mais poderes pôr ventura restantes. Assim, minha tia, uma mulher magra e de pequena estatura, franzina, constantemente de meias de algodão nos seus grossos chinelos, de óculos de aro de ouro, era a primeira, a única e a última instância da família.
Lembro-me perfeitamente dela e dos detalhes sobre sua honrada e virtuosa pessoa. Depois dos arranjos da casa e das ordens distribuídas, ficava sentada na sala de visitas, numa cadeira de balanço fumando um charutinho. Morava na rua 15 de novembro, há poucos passos da casa de meu avô materno, Antônio Maciel, casa depois adquirida pôr sua filha Ester Paiva e Silva e em que mora outro filho, Custódio. Nela morei quando Promotor de Justiça em Baturité.
Embora vivendo em cidade essencialmente católica, minha tia não era freqüentadora de igreja e cumpria suas obrigações religiosas em casa. Mas, os filhos, esses não deveriam faltar à missa dominical. Nisso ela era intransigente e não admitia desculpas. E ë a propósito que me recordo de uma história.
Seu filho Silva, isto é, Vicente Gonçalves Silva Filho, já um tanto graúdo, procurava burlar a vigilância da boa velha, e ela redobrou os cuidados. Teria que ir à missa e conta-lhe o que o padre no sermão. Ora, o vigário Monsenhor Manoel Cândido dos Santos, não era eloqüente e o Silva, mais de uma vez enrolou minha tia. Ela apertou mais e ele voltou , certo domingo, dizendo que o padre repetira o sermão da multiplicação dos pães e dos peixes. Minha tia não era boa em liturgia, mas preparou-se para o Domingo seguinte, já com a tira de sola na mão. “Silva, o que foi que disse o Padre?” Silva não perdeu tempo na resposta: “Minha mãe, o Padre disse que o mundo estava perdido”. A boa velha foi com o Silva à paia: “Perdido está é você, cabra sem vergonha”.
Os dois hoje se terão encontrado na Glória de Deus e talvez minha tia tenha pedido ao filho para esquecer a surra.

O Portador Certo

De José Alci Paiva

Meu irmão Jurandir não era um tipo vulgar, nem no físico nem no que lhe ia por dentro. Muito alto magricela que resistia a qualquer processo de engorda, não deixava, entretanto, de ser um glutão, um bom talher, deste tipo de pessoas que a gente só convida para um almoço quando não tem conhecimento da capacidade de ingestão e a rapidez com que o faz. Para ele não havia alimento ruim, não lhe importando que estivesse salgado ou insosso, e tanto gostava da macarronada preparada com os requintes da cozinha italiana, como se fartava gostosamente de um prato de panelada, comprado a qualquer vendedora de comida feita, no Mercado de Baturité. Pouco tempo depois de almoçar, não se desinteressaria por uma coxa de galinha, nem muito menos por uma tigela de caldo. E tudo isso sem que engordasse, sem conseguir carnes para uma maior cobertura de ossos.
No íntimo, era um espírito alegre, brincalhão, para quem a vida não tinha grandes problemas, e gozava-a como podia, sempre bem, porque não ia muito longe nas suas aspirações: alguns cobres, um terno velho porem muito bem escovado, meias baguetes, à moda da época, e, sobretudo, o com que ir à Fortaleza, vez por outra, para assistir a um filme no Magestic, tomar um sorvete na Nice, flanar pela Praça do Ferreira e à noite, assistir a retreta.
Recordo-me de um episódio de que fui testemunha e no qual ele foi personagem central. No interior é hábito que não desaparece o de mandarem cartas por mão própria, tanto porque se economiza o selo do correio, como porque se tem a impressão de que por portador a carta vai com mais segurança. Hábito velho e ninguém tira. Pois um belo dia apareceu-nos em casa uma senhora conhecida, a mulher do Zé Minau, pedindo ao Jurandir que lhe levasse uma carta para ser entregue em Fortaleza a um parente, pois soubera que ele estava de viagem para lá.
-Ora seu Jurandir, é uma coisa de muito interesse esta carta. É pro Girão, meu cunhado, gerente da A Pernambucana, pedindo um dinheiro emprestado. Já mandei quatro e ate agora não recebi resposta e sei que é porque ele não recebeu nenhuma, pois do contrário, já estaria o dinheiro em minhas mãos... E carta, seu Jurandir, está discutido, só se deve mandar por portador certo, gente direita como o senhor.
O Jurandir agradeceu os elogios e guardou a carta. Que ela não se preocupasse, pois seria a primeira cousa que ele faria quando chegasse a Fortaleza seria entregar a carta ao seu destinatário, nas mãos dele.
A mulherzinha desdobrou-se em novos agradecimentos e em maiores elogios rogou a Deus que o levasse e trouxesse em paz e salvamento na sua viagem.
Jurandir não se demorou muito porque sua permanência em Fortaleza estava sempre em função do dinheiro que possuía e este era sempre muito reduzido, razão porque antes de uma semana regressou à Baturité, contando-me com minúcias o enredo de um filme, cantarolando o ‘’ultimo fox”, descrevendo os melhoramentos da cidade. Os cobres tinham sido curtos e ele lamentava não ter ficado para assistir a um filme da Greta Garbo, bem como não ter comprado mais duas carteiras de cigarro Palace.
Num entre ato da sua história, perguntei pela carta e ele me disse que logo que o trem passou das agulhas a tinha feito em pedaços bem miúdos e atirado pela janela do carro; “-Você acha que eu iria gastar o solado do sapato para entregar uma carta? Estaria eu doido?”.
Mais tarde entrou-nos de porta adentro a mulher do Zé Minau e eu estanquei a leitura de um livro para ver o remate que teria a irresponsabilidade do meu irmão. Mas nada aconteceu do que eu esperava. A mulher entrou alegre, com um embrulho na mão, e foi direta a ele:
- Seu Jurandir, é como eu disse, carta só por gente direita, por um portador certo. Foi só ele receber a carta que o senhor levou e já me mandou o dinheiro. Fez uma pausa para tornar mais solene o seu agradecimento e continuou: Eu venho agradecer ao senhor... E lhe trago aqui esta latinha de doce de caju.
Claro que a carta que o parente recebera fora uma das anteriores, nunca, porém a que o Jurandir levara.