quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Os Estudos do Lindolfo


 José Alci Paiva
            Direi que se chamava Lindolfo, para não mencionar-lhe o nome exato, pois é possível que lhe vivam parentes, e não serei eu quem ira tingir o manto de sabença que talvez os envolvam, com a notícia de que um seu antepassado foi o menino mais burro de que tive notícias. Porque na verdade - que isso não lhe crie dificuldades no outro mundo, e não seja pôr causa de sua burrice que não esteja santamente refestelado em confortável assento nos páramos eternos – na verdade, repito, o Lindolfo era mesmo burro. Burro por convicção, naturalmente burro; era burro na mais desmesurada latitude do termo. Se me permitem um contra-senso, eu direi que aquilo lhe parecia uma virtude, tão enraizada a sua burrice, tão espontânea, e, poderei acrescentar, para justificar a comparação: tão inofensiva e modesta.
            O pai de Lindolfo o mandou aprender “letras” com o professor Frutuoso de Paiva Brito, pôr sinal que meu avô paterno, homem austero, com o qual não havia menino “rude” que não desarnasse. Era, aliás, o único, na sua arte em Baturite. Lindolfo chegara à cidade como um poldro chega ao amansador “para alizar os pêlos e arredondar os cascos”. E ficara decidido que se hospedaria em casa de meu avô materno, “coronel” Antônio Maciel, compadre e amigo do pai dele. Não o conheci, pois isso se deu muitos anos antes de mim. Mas tive farto noticiário a respeito do talento do Lindolfo. Disso deu as mais convincentes provas. Era renitente na sua burrice, não deixando nunca que lhe polissem as arestas. Inúteis os métodos do professor Frutuoso!
            Diariamente regressava da aula com equimoses no espinhaço, ou com as mãos inchadas pela palmatória do velho. Mas o físico lhe permitia aquelas servícias e talvez o prejudicado fosse o velho, para quem o exercício físico de surrar o Lindolfo, já deveria estar acima de suas energias. Alem dos indícios veementes de que “não dera a lição”, trazia, para documentar o ocorrido, um bilhete que meu avô guardava, para apresentá-lo ao pai do Lindolfo, pôr ocasião da sua visita mensal ao filho.
            Quem pôr ventura, metera na cabeça do pai que ele gostava daquele martírio? Pensava o Lindolfo em suas horas amargas. Não seria melhor que tivesse ficado ajudando no roçado, banhando os animais, tirando jandaíra, tomando banho de açude?
            Ainda penso que ele teria razão nas suas considerações, especialmente quando sabia de ciência própria, que era constituído de material resistente a qualquer tentativa de penetração.
            A cartilha estaria nova em folha se o professor não tivesse batido com ela tantas vazes na cabeça do Lindolfo, como se o que nela continha pudesse entrar pôr atrito, pôr fricção. Os cadernos, um de “contas e outro de escrita”, testemunhavam o desinteresse do Lindolfo: aqui e ali ele garatujava uma coruja que não se parecia com ave nenhuma ou um bicho qualquer medonho, cheio de dentes pontudos e ameaçadores. Organizada, cuidada e zelada, só a sacola da merenda.
            As informações dadas ao velho, a respeito do aproveitamento do filho, eram lacônicas, porque a documentação falava pôr si. O meu avô se limitava a passar às mãos do compadre a maçaroca de bilhetes que recebera durante o mês, ele os lia um a um, pôr traz de uns óculos mal ajustados na cara. Alias, bastaria ler apenas um, pois o restante era do mesmo teor...
            Depois da demorada leitura, pedia permissão ao meu avô para ir exemplar o Lindolfo. Meu avô ficava silencioso, na sua cadeira de balanço, sem uma reação, porque sempre foram inúteis as suas objeções. Daí a algum tempo, lá se voltavam os dois, do fundo do quintal, o pai e o filho, abraçados, suados. O velho apopléctico; o filho lanhado a relhos crus.
             A reação paterna se fizera sentir, ao modo da época: o Lindolfo ficara exemplado... Que entenderia o velho pôr aquele exemplado, que nenhum exemplo produzia, nem mesmo no filho?
            Isso durou não sei quanto tempo: surra na escola, bilhete na volta, surra mensal para que o Lindolfo fosse exemplado. Mas sei como terminou. Porque o pai de Lindolfo morreu antes que ele completasse o curso. Vinha descendo a serra e, não se sabe como, o burro cardão cismou não se sabe de que, murchou as orelhas e rebolou o velho de grota abaixo. De lá ele já saiu com as condições que precisaria para morrer: uma perna quebrada, três costelas desmanteladas e uma pancada à altura da pá esquerda. Foi dessa que ele se queixou mais ate morrer, dizendo que tinha certeza de que apustemara pôr dentro. Não sei se o auto-diagnóstico era exato. Sei que ele morreu mesmo, como se morre no sertão numa rede branca de varandas, com uma esteira de palha pôr baixo, pra evitar a frieza...
            Foi só a notícia da morte do velho chegar a Baturité o Lindolfo partiu, feliz, para o enterro do pai, levando o material que a partir daquela data haveria de ser inteiramente inútil. Regressava às origens de onde nunca o haviam de ter arrancado.

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