quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O Portador Certo

De José Alci Paiva

Meu irmão Jurandir não era um tipo vulgar, nem no físico nem no que lhe ia por dentro. Muito alto magricela que resistia a qualquer processo de engorda, não deixava, entretanto, de ser um glutão, um bom talher, deste tipo de pessoas que a gente só convida para um almoço quando não tem conhecimento da capacidade de ingestão e a rapidez com que o faz. Para ele não havia alimento ruim, não lhe importando que estivesse salgado ou insosso, e tanto gostava da macarronada preparada com os requintes da cozinha italiana, como se fartava gostosamente de um prato de panelada, comprado a qualquer vendedora de comida feita, no Mercado de Baturité. Pouco tempo depois de almoçar, não se desinteressaria por uma coxa de galinha, nem muito menos por uma tigela de caldo. E tudo isso sem que engordasse, sem conseguir carnes para uma maior cobertura de ossos.
No íntimo, era um espírito alegre, brincalhão, para quem a vida não tinha grandes problemas, e gozava-a como podia, sempre bem, porque não ia muito longe nas suas aspirações: alguns cobres, um terno velho porem muito bem escovado, meias baguetes, à moda da época, e, sobretudo, o com que ir à Fortaleza, vez por outra, para assistir a um filme no Magestic, tomar um sorvete na Nice, flanar pela Praça do Ferreira e à noite, assistir a retreta.
Recordo-me de um episódio de que fui testemunha e no qual ele foi personagem central. No interior é hábito que não desaparece o de mandarem cartas por mão própria, tanto porque se economiza o selo do correio, como porque se tem a impressão de que por portador a carta vai com mais segurança. Hábito velho e ninguém tira. Pois um belo dia apareceu-nos em casa uma senhora conhecida, a mulher do Zé Minau, pedindo ao Jurandir que lhe levasse uma carta para ser entregue em Fortaleza a um parente, pois soubera que ele estava de viagem para lá.
-Ora seu Jurandir, é uma coisa de muito interesse esta carta. É pro Girão, meu cunhado, gerente da A Pernambucana, pedindo um dinheiro emprestado. Já mandei quatro e ate agora não recebi resposta e sei que é porque ele não recebeu nenhuma, pois do contrário, já estaria o dinheiro em minhas mãos... E carta, seu Jurandir, está discutido, só se deve mandar por portador certo, gente direita como o senhor.
O Jurandir agradeceu os elogios e guardou a carta. Que ela não se preocupasse, pois seria a primeira cousa que ele faria quando chegasse a Fortaleza seria entregar a carta ao seu destinatário, nas mãos dele.
A mulherzinha desdobrou-se em novos agradecimentos e em maiores elogios rogou a Deus que o levasse e trouxesse em paz e salvamento na sua viagem.
Jurandir não se demorou muito porque sua permanência em Fortaleza estava sempre em função do dinheiro que possuía e este era sempre muito reduzido, razão porque antes de uma semana regressou à Baturité, contando-me com minúcias o enredo de um filme, cantarolando o ‘’ultimo fox”, descrevendo os melhoramentos da cidade. Os cobres tinham sido curtos e ele lamentava não ter ficado para assistir a um filme da Greta Garbo, bem como não ter comprado mais duas carteiras de cigarro Palace.
Num entre ato da sua história, perguntei pela carta e ele me disse que logo que o trem passou das agulhas a tinha feito em pedaços bem miúdos e atirado pela janela do carro; “-Você acha que eu iria gastar o solado do sapato para entregar uma carta? Estaria eu doido?”.
Mais tarde entrou-nos de porta adentro a mulher do Zé Minau e eu estanquei a leitura de um livro para ver o remate que teria a irresponsabilidade do meu irmão. Mas nada aconteceu do que eu esperava. A mulher entrou alegre, com um embrulho na mão, e foi direta a ele:
- Seu Jurandir, é como eu disse, carta só por gente direita, por um portador certo. Foi só ele receber a carta que o senhor levou e já me mandou o dinheiro. Fez uma pausa para tornar mais solene o seu agradecimento e continuou: Eu venho agradecer ao senhor... E lhe trago aqui esta latinha de doce de caju.
Claro que a carta que o parente recebera fora uma das anteriores, nunca, porém a que o Jurandir levara.

Nenhum comentário:

Postar um comentário