quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Os Anexos da Carta


José Alci Paiva 
            Eu tinha interesse em que minha carta chegasse a Fortaleza no dia seguinte e estava redigindo-a as pressas, aproveitando um resto de luz elétrica que iria terminar às dez da noite. As comunicações entre Aracoiaba e Fortaleza se limitavam aos trens da R.V.C., pois não havia linhas de ônibus e os caminhões quase não trafegavam naquela época invernosa. Pedi a uma pessoa que me estava próxima que indagasse quem iria viajar para Fortaleza pelo “suburbano” do dia seguinte (era um trem que fazia o trecho ate Baturité, regressando todas as manhãs e apesar do longo percurso, o nome o acompanhou ate a extinção).
             Soube logo que o Rochinha viajaria e me apressei em mandar-lhe um recado que não fechasse a porta, pois eu iria levar uma carta para que ele a entregasse em Fortaleza.
            Coincidência feliz aquela. O Rochinha era dos mais prestantes homens do lugar. Serviçal ate não mais poder. Honesto pôr excelência e, sobretudo, me tinha muita deferência. Era um tipo curioso da cidade, pequeno quitandeiro, nada fizera no comércio, mas perseverava e o bom Deus lhe dava, pelo menos, o sustento para si e os seus. Como político era uma negação: mais de uma vez candidatou-se a vereador, mandou imprimir milhares de chapas que distribuía em profusão, na ingênua confiança de que todas iam cair no fundo da urna.
Nunca o vi penteado. A não ser nos enterros e na posse dos prefeitos (porque seria o paralelismo)? quando envergava a velha casimira azul, quase preta, era sempre a mesma apresentação, muito despicienda Assim mesmo, era useiro e vezeiro no Cartório do Castrinho, acompanhando os seus casos forenses, pois que era invariavelmente nomeado curador de ausentes e interditos, tutor de menores, defensor dativo dos que não tinham advogado. Punha nisso toda a sua vaidade. Era vê-lo assinando as defesas feitas pelo Castrinho ou tomando parte nas audiências, imponentemente inútil, porque não sabia fazer qualquer pergunta! Todos os juizes designados para Aracoiaba, recebiam logo a visita do Rochinha, que se apresentava como advogado da terra, o advogado dos pobres e dos humildes, como diria se soubesse dizer essas coisas de comício. Mais do que advogado, porque a seu ver, fazia parte da Justiça local, ou, melhormente, usando as suas próprias palavras ao Dr. Raul Girão, então Juiz de Direito, “fazia parte da comandita”! Sob a denominação de comandita, ele reunia todo o pessoal da justiça do Município, principiando pela importante figura do Juiz!
            Eu já estava com a carta terminada e ia saindo para a casa do Rochinha, quando ele “riscou” à minha porta, ofegante, parecendo mais gordo que de natural, a camisa por fora das calças, os pés milagrosamente acondicionados nuns restos  de tamancos, o seu calçado predileto.
            _ Doutor, eu vim aqui dizer que não posso levar a sua carta.
            Eu poderia esperar tudo, menos aquilo. Teria o Rochinha renunciado ao seu quase sacerdócio de fazer favores? De ser prestativo, dos mais prestativos que eu conhecia? E continuou o seu arrazoado, dobrando e redobrando um já amarfanhado chapéu de massa marrom.
            É o seguinte doutor: eu vou dizer pôr que não levo a sua carta e o senhor não ficará zangado comigo...
            Tentei interrompe-lo. Que sim. Que não necessitava de desculpas. Eu as acreditava sinceras. Não precisava de esclarecimentos. Mas não o contive e ele prosseguiu:
            _ Eu estava uma vez em Fortaleza, de vinda para ca. E um filho do “seu” Quinca Pereira me pediu para trazer uma carta para ele. Era uma coisa urgente e me pediu que fosse entregar pessoalmente quando chegasse. E fui mesmo. Cheguei lá o homem leu uns três ou quatro estirados de papel almaço e, no fim me disse: Rochinha, e as latas de pescadas? “Que pescadas seu Quinca?”, atalhei aflito.
_Olhe Rochinha, aqui na carta acusa: anexas – duas latas de pescada...
            Doutor, o senhor não imagina a minha contrariedade. Eu não tinha recebido pescada de espécie alguma. Nada, só a carta. Foi um Deus nos acuda e eu creio que, apesar de eu ser um homem direito, a minha história não calhou logo na cabeça dele...
Rochinha falava alto, gesticulava tão aflito na reprodução dos detalhes, quanto, pôr certo, estivera na ocasião da desagradável ocorrência. Parecia que a coisa estava se dando ali mesmo. Naquela hora; que se tratava de um acontecimento atual, presentes todos os personagens; que estava novamente  defendendo seu nome, expungindo as mais pequeninas duvidas em torno de sua honestidade!
Eu estava para rir daquilo tudo: a carta em cima da mesa, o Rochinha repetindo uns trechos da história, a luz já piscando para apagar, o chapéu de massa já entulhando uma cesta de papéis, quando ele, fazendo uma pausa em que insistia em colocar na casa muito suja da camisa um botão infinitamente maior, pôs uma pedra em cima do assunto: _ Pois é doutor, desculpe. Mas eu não levo a sua carta porque não sei se ela acusa algum anexo!
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